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A importância da perícia psicológica para restauração do bem jurídico violado nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes: breves apontamentos

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A importância da perícia psicológica para restauração do bem jurídico violado nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes: breves apontamentos

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Não se duvida que a violência sexual contra crianças e adolescentes é uma questão interdisciplinar, já que envolve questões atinentes à psicologia, direito, saúde e segurança pública. Por certo que tal tema representa contemporaneamente um dos grandes desafios do ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que viola a dignidade sexual, um dos bens jurídicos mais relevantes do ser humano, em especial à criança e ao adolescente.

Se atentarmos para os dados oficiais ,que são alarmantes, tem-se que dentre as mais de 35 mil denúncias de violências contra crianças e adolescentes, veiculadas no “Disque 100” (BRASIL, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 2021), no período de 1º de janeiro a 12 de maio de 2021, 17,5% estão ligadas à violência sexual. Em Pernambuco, com base nos dados das Secretarias estaduais de Defesa Social e Desenvolvimento Social, Criança e Juventude, nos seis primeiros meses de 2020, foram registrados 1.047 estupros, sendo 325 contra crianças de 0 a 11 anos, e 356 contra adolescentes de 12 a 17 anos (PE, Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude do Estado de Pernambuco, 2021).

A forma como a sociedade se relaciona com a criança e adolescente e o como esta relação é construída ao longo do tempo irá nos fazer compreender o porquê da existência da violência dirigida a estas pessoas.

Se fizermos um recorte histórico, na Idade Média as crianças eram tratadas como pequenos adultos, poisse vestiam como adultos, o relacionamento com estes abordava todo o tipo de assuntos, ou seja, as crianças não eram consideradas como pessoas que necessitavam de cuidados especiais. Assim sendo, estas participavam da vida de adultos como o trabalho, festas e jogos, inclusive orgias e enforcamentos públicos, vivências consideradas, atualmente, inadequadas para a formação do indivíduo. A expressão enfant (criança), por exemplo, significava não falante, caracterizando a infância como ausência da fala (ROCHA, 1999).

No Brasil, os primeiros casos de violência contra a criança remetem à separação e aos castigos físicos praticados contra as crianças indígenas, que eram separadas de suas famílias e entregues à catequização jesuíta, sem falar das crianças africanas que eram trazidas junto com adultos de maneira brutal e desumana, lembranças terríveis dos momentos históricos mais violentos do país (CARDOSO et al, 2009). Apenas no período entre a abolição da escravatura e a proclamação da República é que surgem os primeiros textos que tratavam da violência contra crianças e adolescentes, principalmente à violência doméstica com medidas de suspensão, destituição e restituição do pátrio poder, conforme circunstâncias que vão desde o cometimento de crimes por parte de pai e mãe até situações que comprometam a saúde e moralidade de crianças e adolescentes (CARDOSO, et al,2009).

A literatura científica sistematizou alguns conceitos para o estudo da violência contra crianças e adolescentes, e dentre estes encontra-se a violência sexual. Importa frisar que quando da análise de situações concretas de violências, verifica-se que os diferentes tipos não são excludentes, ou seja, uma violência física pode ser também uma violência psicológica, assim como uma violência sexual pode ser física e psicológica. Nestes breves apontamentos iremos nos ater a questão da violência sexual contra crianças e adolescentes e o importante papel da perícia psicológica. Para um melhor entendimento sobre o tema importa conceituar a violência sexual perpetrada contra crianças e adolescentes. Para tanto, Azevedo e Guerra (2002, p. 33), assim definem a violência sexual: “consiste em todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual cujo agressor está em estágio de desenvolvimento mais adiantado que a criança e o adolescente. Tem por intenção estimulá-la sexualmente ou utilizá-la para obter satisfação sexual. Apresenta-se sobre a forma de práticas eróticas e sexuais impostas à criança ou ao adolescente pela violência física, ameaças ou indução da sua vontade. Esse fenômeno violento pode variar desde atos em que não se produz o contato sexual (voyeurismo, exibicionismo, produção de fotos), até diferentes tipos de ações que incluem contato sexual sem ou com penetração.”

Considerando a complexidade que envolve a violência sexual, importa que seja incluída a perícia psicológica para casos de violência contra crianças e adolescentes. Sabe-se que no ordenamento jurídico pátrio não há prova mais importante que outra, entretanto, em certos delitos a perícia é fundamental para se obter elementos comprobatórios. Assim, além do exame do corpo de delito, outro instrumento processual que tem imprescindível valor é a perícia psicológica, aqui entendida como valiosa ferramenta de avaliação que consiste na elucidação de quesitos jurídicos e é feita por psicólogos preparados para tal função.

Nos casos de violência sexual contra infantes que, por terem dificuldades próprias de seu desenvolvimento de identificar práticas abusivas por conta da confiança que deposita no agente causador do abuso ou violência sexual, a perícia psicológica se faz necessária e importante, já que na maioria dos casos a violência sexual se dá no âmbito intrafamiliar. Nessa seara, assim como o exame de corpo e delito é fundamental para comprovação de violações de natureza física, a perícia psicológica é imprescindível para a elucidação do contexto envolvendo a violência sexual praticada contra crianças e adolescentes, tanto para identificar a gravidade do dano causado, quanto para desvendar pontos obscuros dos fatos. Desta feita, a perícia psicológica no âmbito judicial se mostra como meio de prova de grande relevância, capaz de contribuir de forma muito positiva ao desenvolvimento do processo, elucidando fatos e identificando danos.

E vamos mais além, o objetivo da utilização dessa ferramenta deve ser expandido de maneira a auxiliar à vítima, e não apenas o processo judicial. A perícia psicológica apenas como instrumento processual no campo jurídico pode ser um desperdício, já que a construção de relação que se dá nesse processo é fundamental para o desenvolvimento de uma continuidade dessa relação, pois propiciaria a reestruturação de aspectos psicológicos da vítima, por mais básicos que sejam.

Por obvio que os recursos disponíveis ao Estado devem ser levados em consideração, afinal, a continuidade do acompanhamento psicológico ensejaria mais despesas públicas. Contudo, não devemos perder de vista que é papel do Estado, consoante a Constituição da República, garantir direitos fundamentais.

Desta feita, defendemos a ideia de que não deve o Estado se preocupar apenas em identificar e punir um crime, negligenciando a restauração do bem jurídico violado, o que em última análise, pode-se ao estar fechando os olhos para a recomposição do que fora violado, ofender gravemente o direito fundamental à dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS:

AZEVEDO, M; GUERRA, V.N.A. Contribuições brasileiras à prevenção de violência doméstica contra crianças e adolescentes. In: WESPHAL, M.F. (org) Violência e Criança. São Paulo EDUSP, 2002.

BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2021/ Acesso em: 25/07/2021.

CARDOSO, A.V. et al. Centro de Perícias: uma experiência na perícia criminal em casos de violência contra crianças e adolescentes. São Luís: gráfica Aquarela, 2009.

PERNAMBUCO. Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude. Disponível em: http://www.sdscj.pe.gov.br/governo-de-pernambuco-promove-acoes-preventivas-e-de-sensibilizacao-para-combater-as-violacoes-de-criancas-e-adolescentes-no-estado/ Acesso em: 25/07/2021.

ROCHA, M. Conhecendo para evitar a negligência nos cuidados da saúde com crianças e adolescentes. Revista Gaúcha de enfermagem. Porto Alegre. v. 20. 1999.

 

Por Silvia Marise Araújo Lopes

Professora convidada da DTR Soluções. Mestra em Gestão Pública pela UFPE. Psicóloga e Advogada. Membra da Comissão de Perícias Forenses da OAB/PE. Professora Universitária de Cursos de Graduação e Pós-Graduação.